domingo, 22 de novembro de 2009

A Odisseia negra

Foi com muita alegria que encontrei, recém-chegados à biblioteca da escola estadual onde trabalho, dois exemplares de um livro redentor: A Criação do Mundo – Contos e Lendas Afro-brasileiros, de Reginaldo Prandi, ilustrado por Joana Lira (ed. Companhia das Letras). Digo redentor por ser uma ferramenta de grande valia para que nós, educadores e educadoras, possamos cumprir a lei 10639, que versa sobre o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, salvando os estabelecimentos de ensino de sua tradicional visão eurocêntrica. E só aqueles corações que ensinam dispostos a levar adiante a chama de uma educação libertadora, como a queria Paulo Freire, sentem o quanto é difícil tratar desse tema em sala de aula. A ideologia dos colonizadores, que saquearam a África e escravizaram seus braços e estupraram seus ventres, sob o pretexto de que eles estavam “pagando seus pecados”, persiste. O oligopólio dos meios de comunicação contribui para manter vivos todos os preconceitos contra a cultura afro. A mídia que conseguiu apagar, nos grandes centros urbanos, a memória das centenárias cantigas de roda que divertiram nossos avós e bisavós em sua infância, também consegue, graças às falas intolerantes de líderes religiosos fundamentalistas, teleinquisidores, dar prosseguimento ao ódio racista contra a cultura afro-descendente. Que o diga quem já experimentou, como eu, defender, em sala de aula, a beleza e a importância das narrativas iorubás, a interpretação do mundo pela teogonia que aqui aportou, fortíssima, nos navios tumbeiros, os ensinamentos contidos nas histórias dos orixás, fator indispensável na resistência dos negros que lutaram não só pela sua liberdade, dos seus maridos, esposas, filhos e filhas, mas também por amor aos seus deuses.
O autor, Reginaldo Prandi, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo,é um profundo conhecedor da cultura afro-brasileira, tendo escrito vários estudos sobre o candomblé. Nessa obra destinada ao público infanto-juvenil mostra-se ele muito habilidoso na construção desse pequeno romance, que elenca várias pequenas histórias sobre os orixás, tendo, como fio condutor a história de Adetutu, uma jovem negra capturada na África que, na sofrida travessia no navio negreiro, relembra as várias lendas que sua avó lhe contou, exercendo, assim, duplo papel: quando acordada, é a personagem principal; quando dorme, é apenas coadjuvante que observa as aventuras dos orixás criando o mundo, inventando a agricultura, a metalurgia, a religião, as instituições. Ao final de cada pequena história, sempre uma das entidades lhe dá um regalo que ela, atenciosa, guarda num saquinho que manterá consigo toda a vida. Chegando na Bahia, é batizada e recebe o nome de Maria da Conceição. Escrava de ganho, tendo que trabalhar nas ruas para os seus senhores, consegue, por fim, comprar sua alforria e, juntamente com outros negros alforriados, funda um terreiro em Salvador, onde poderá utilizar os dons que recebeu dos orixás para preservar a memória e a cultura de sua gente.
O livro termina com um apêndice composto de pequenos artigos e fotografias que explicam a quem não tenha familiaridade com o tema os principais conceitos do candomblé.
Leitura recomendada para todos e todas que desejam construir um país sem preconceitos raciais nem ódios religiosos.

Edson Amaro é professor de Língua Portuguesa da rede pública estadual do Rio de Janeiro, licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Estudos Literários pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE), núcleo São Gonçalo, RJ.

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