Querida Iza,
não tenho muito tempo para ver noticiários, mas a discussão sobre o livro de Monteiro Lobato chegou à sala dos professores de uma das escolas em que trabalho. (Deve ter chegado na outra também, mas por motivos de saúde, não estive lá.) É um livro infantil que tornou-se tragédia grega. Sim, Monteiro Lobato é maior nome da literatura infantil brasileira; sim, eu sou contra a censura; sim, eu sou contra o racismo; sim, os livros de Monteiro Lobato estão repletos de ideias racistas e machistas. Não, não podemos tapar o sol com a peneira e fazer de conta que vivemos uma democracia racial.
Emília, a personagem mais popular de Lobato, trata tia Nastácia indecentemente do começo ao fim das estórias (vamos ver isso apenas como uma revolta da criatura contra o criador?) embora D. Benta a repreenda. Mas a própria D. Benta chama Tia Nastácia de negra ignorante em "História do Mundo para Crianças". Em "O Poço do Visconde", ela dorme o tempo todo durante as aulas de Geologia do Visconde e diz que tudo aquilo é só história de "peixe podre", desconsiderando uma discussão fundamental para o futuro do Brasil. Em "Emília no País da Gramática", Quindim, ao explicar o que é estilo diz que, "se um dia Pedrinho se tornar escritor". Tinha que ser o Pedrinho? Por que não a Narizinho? E desgraçadamente Monteiro Lobato, na Revolução Constitucionalista de 1932, dizia que aquela guerra deveria ser não para exigir uma Constituição para o Brasil, mas que São Paulo tinha que aproveitar a ocasião para se emancipar do Brasil, assinando embaixo da opinião rancoroso que dizia que São Paulo era a locomotiva que arrastava os outros estados brasileiros.
Quase diariamente vemos manifestações de racismo em sala de aula. Uma vez em que um livro escolar fazia referência ao texto do Gênesis da Criação do Mundo e queria mostrar aos alunos o poder criador da palavra, eu, para ajudá-los a chegarem onde o autor queria que chegassem, contei a eles a história da Criação do Mundo segundo o candomblé, no qual não se usa a palavra para criar. Os evangélicos taparam os ouvidos. A política de extermínio de pobres e favelados é aplaudida por pobres que não moram em favela. Uma aluna que se diz evangélica esqueceu as lições de amor e dignidade do Evangelho quando eu estava comentando a situação carcerária do país. Comentei a entrevista de uma padre da Pastoral Carcerária que visitou um desses campos de concentração transformados em museu e disse que havia mais conforto lá que nos presídios brasileiros. Ela me perguntou: "E você acha que bandido tem que ter conforto?" Quer dizer, ela acha certo colocar 100 homens onde só deveria caber 30 ou 40!
E os casos de bullying? (Por que não usam o termo nativo "zombaria" ao invés de importar um termo inglês?) Imagine que reforço para as zombarias contra os que são diferentes (negros, favelados etc.) se colocarmos nas mãos de alunos que não têm hábito de leitura nem consciência crítica termos preconceituosos.
Vivemos uma época em que os oprimidos disputam o Estado e seus Aparelhos Ideológicos e tentam eliminar preconceitos seculares. E toda a nossa civilização foi construída sobre preconceitos. Vale lembrar que a Bíblia diz que a mulher tem de ser submissa ao marido (então, seria um ser inferior; razão pela qual eu recuso a me casar, pois advogo a igualdade entre os sexos); que quem faz sexo com pessoas do mesmo sexo tem de ser exterminado; vale lembrar que Gregório de Matos despreza os negros; etc. etc. Não podemos fingir que tivemos um passado de glórias, como diz uma mentira chamada Hino Nacional Brasileiro. E como dizer que o futuro será de paz se o futuro começa agora?
Monteiro Lobato escreveu dessa forma porque, naquela época, não haiva por parte dos governos a ideia de por todas as crianças na escolas, nem um movimento negro tão atuante como hoje. Seus livros alcançavam a classe alta e a classe média. Mas quando suas estórias viraram seriados de TV, os produtores viram que tinham que pegar leve, não podiam ser fiéis aos livros, ou perderiam seus empregos. Da mesma forma, Margaret Mitchell escreveu um clássico chamado "... E o Vento Levou", lançado nos anos 30. Quando, nos anos 90, Alexandra Ripley se dispôs a escrever a continuação, "Scarlett", teve de dar um tratamento todo diferente para os negros do romance.
Marisa Lajolo pode ser uma intelectual competentíssima, mas ela não vive a realidade que eu vivo, trabalhando em escola pública, vendo o fascismo avançar a cada dia, travestido de revelação divina. E quanta gente conquistou cadeiras no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas no último pleito falando contra os direitos humanos? Regurgitando ódio aos presidiários, aos homossexuais, aos ateus, às mulheres pobres que precisam abortar (nenhuma mulher sonha com isso, lembremos sempre)?
Esta não é, cara Iza, uma discussão apenas literária, mas também sociológica.
Atenciosamente,
Edson Amaro
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