terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Tributo a Miep Gies

Cara sra. Miep Gies,
Quando se fala em Literatura infanto-juvenil, quase sempre trata-se de livros escritos para crianças e adolescentes por mãos adultas. São pouquíssimos, em todas as línguas, os livros escritos por jovens. Deste, o mais importante é, certamente, O "Diário de Anne Frank", uma obra da qual eu nunca consigo falar em sala de aula com meus alunos sem que meus olhos se inundem de lágrimas. Eu li já adulto, em meus tempos de faculdade, na Universidade Federal Fluminense e tenho agora, ao alcance da mão, um exemplar velhinho da adaptação que os americanos Frances Goodrich e Albert Hackett fizeram para o teatro (Tradução de Gert Meyer, Rio de Janeiro: Editora Agir, 1975. Nem sei se ainda é publicada.). Comprei o livrinho em um sebo e não sei quantas vezes já o reli e, ao terminar, meus olhos sempre estão encharcados.
Não creio que haja melhor leitura para os corações e as mentes adolescentes em formação. Acho que somente os Evangelhos têm um apelo tão forte para a solidariedade. Acho mesmo que, se Cristo tivesse de ir a uma livraria, seria para comprar um exemplar desse livro. Se Gandhi fosse ao teatro, seria para ver essa peça. Quem ama a paz deve conhecer essa obra e recomendá-la por onde andar.
E neste 11 de janeiro de 2010, o seu generoso coração, sra. Miep, parou de bater. Ao ler e reler essa peça, fico pensando, sra. Miep, quanto lhe custou em coragem, em despesas a nobre intenção da sra. e do sr. Kraler e daquelas outras pessoas amigas em acolher aquelas oito vidas judias, sentenciadas à morte pelo simples “crime” de existirem. E aos 100 anos de idade a senhora deixa esse planeta, que precisa tanto de gente assim corajosa e solidária. Essa sua longevidade me faz pensar que fazer o bem aos outros deve fazer bem à saúde...
No livro de Anne Frank, chamam a atenção as diferenças que encontram harmonicamente. Cristãos celebrando o Hanukkah junto com os judeus que abrigam, judeus pela primeira vez celebrando o Natal com os cristãos que os acolhem. Na peça, que exige uma ação permanente para não enfadar os espectadores, são mais intensos os conflitos: o confinamento, a pouca comida sendo a duras penas dividida, as personalidades que se chocam. E também a descoberta do amor entre os adolescentes Anne e Peter. Ele, um garoto tímido que se esquiva das discussões em companhia do seu gato e que, a princípio, é desprezado por Anne; ela, a garota sonhadora que sonha em crescer e ser escritora, contar, velhinha, a seus netos o difícil período do esconderijo. São o otimismo de Anne, sua alegria inquebrantável, seus projetos esmagados pela crueldade nazista que nos encantam, nos comovem e nos entristecem quando fechamos o livro e lembramos seu fim prematuro.
A frase mais célebre escrita por Anne, presente no diário e na peça, é: “Apesar de tudo, continuo acreditando na bondade humana.” A peça começa quando o sr. Frank, único sobrevivente, volta ao esconderijo após terminada a guerra e a senhora, cara Miep, lhe entrega o diário. Ele o lê para o público, que assiste à reconstituição daquela difícil convivência, e, ao final, ele conta como a família foi conduzida aos campos de extermínio – apesar de tudo, Anne sorria porque, enfim, sentia o Sol e a brisa após dois anos de reclusão –, separada e exterminada, pouco antes do fim da derrota do nazismo. A peça se encerra quando o sr. Frank relê a frase imortal e declara sobre a otimista filha aniquilada: “Ela me faz sentir pequeno.”
Faço minhas as palavras do sr. Frank. Sinto-me pequeno diante do talento precoce e do otimismo de Anne Frank e também da sua generosidade e da sua coragem, sra. Miep Gies. E fico imaginando se, neste exato momento, na Palestina oprimida pelo estado israelense, que copia a crueldade dos nazistas, não há um coração corajoso e generoso como o seu, acolhendo famílias ameaçadas por um Estado genocida, e, quem sabe, um dia, quando os palestinos tiverem seu próprio Estado, sua sobrevivência assegurada, veremos surgir um diário escrito por uma adolescente palestina, uma nova Anne testemunhando o holocausto de hoje.
Obrigado, Sra. Miep, por entregar à juventude "O Diário de Anne Frank". Descanse em paz.

Edson Amaro é licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, professor da rede estadual do Rio de Janeiro e diretor do núcleo São Gonçalo do SEPE – Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação.

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