segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Vitória sobre o tráfico ou Papai Noel existe

Se eu acreditasse em Coelhinho da Páscoa, estaria aplaudindo de pé as operações nas favelas cariocas de enfrentamento ao tráfico, saudadas pelo jornalismo dependente das verbas estatais como a solução para todos os males. Só os crédulos acreditam que tudo vai continuar assim nos próximos seis meses.
Quando a TV exibe as mansões dos traficantes, as repórteres se deslumbram e fingem gozar de alegria como atrizes de filme pornôs. Por que não mostram as mansões dos fabricantes das armas que o tráfico usa: aqueles bilionários que têm suas ações na Bolsa de Valores de Wall Street, os principais beneficiados com o tráfico de entorpecente e com o combate a esse mesmo tráfico, porque também vendem seus aparelhos de matar aos policiais e aos exércitos de todo o mundo?
Fuzis e granadas não nascem em árvores, mas questionar a procedência deles, o seu nascedouro, é pecado mortal, pois causaria um terremoto nas Bolsas de Valores.
Sendo assim, acabemos logo o tráfico: legalizemos as drogas, pois quem usa não vai deixar de usar em nome do bem público, como ninguém deixou de usar álcool nos anos 20 e 30 nos EUA devido ao puritanismo da Lei Seca. É melhor que os produtores de entorpecentes paguem impostos e assinem a Carteira de Trabalho de seus funcionários, como fazem os produtores de bebidas alcoólicas.

sábado, 6 de novembro de 2010

Palavras de Pepe Mujica, presidente do Uruguai

"Que seria deste mundo sem militantes? Como seria a condição humana se não houvesse militantes?

Não porque os militantes sejam perfeitos, porque tenham sempre a razão, porque sejam super-homens e super-mulheres e não se equivoquem.

Não é isso. É que os militantes não vêm para buscar o seu. Vêm entregar a alma por um punhado de sonhos.

Ao fim e ao cabo, o progresso da condição humana depende fundamentalmente de que exista gente que se sinta feliz em gastar sua vida a serviço do progresso humano.

Ser militante não é carregar uma cruz de sacrifício. É viver a glória interior de lutar pela liberdade em seu sentido transcendente".

Pepe Mujica - Pres. Uruguay

Comentário sobre Monteiro Lobato a propósito do texto de Marisa Lajolo; enviado à prof. Iza Gonçalves Quelhas

Querida Iza,

não tenho muito tempo para ver noticiários, mas a discussão sobre o livro de Monteiro Lobato chegou à sala dos professores de uma das escolas em que trabalho. (Deve ter chegado na outra também, mas por motivos de saúde, não estive lá.) É um livro infantil que tornou-se tragédia grega. Sim, Monteiro Lobato é maior nome da literatura infantil brasileira; sim, eu sou contra a censura; sim, eu sou contra o racismo; sim, os livros de Monteiro Lobato estão repletos de ideias racistas e machistas. Não, não podemos tapar o sol com a peneira e fazer de conta que vivemos uma democracia racial.
Emília, a personagem mais popular de Lobato, trata tia Nastácia indecentemente do começo ao fim das estórias (vamos ver isso apenas como uma revolta da criatura contra o criador?) embora D. Benta a repreenda. Mas a própria D. Benta chama Tia Nastácia de negra ignorante em "História do Mundo para Crianças". Em "O Poço do Visconde", ela dorme o tempo todo durante as aulas de Geologia do Visconde e diz que tudo aquilo é só história de "peixe podre", desconsiderando uma discussão fundamental para o futuro do Brasil. Em "Emília no País da Gramática", Quindim, ao explicar o que é estilo diz que, "se um dia Pedrinho se tornar escritor". Tinha que ser o Pedrinho? Por que não a Narizinho? E desgraçadamente Monteiro Lobato, na Revolução Constitucionalista de 1932, dizia que aquela guerra deveria ser não para exigir uma Constituição para o Brasil, mas que São Paulo tinha que aproveitar a ocasião para se emancipar do Brasil, assinando embaixo da opinião rancoroso que dizia que São Paulo era a locomotiva que arrastava os outros estados brasileiros.
Quase diariamente vemos manifestações de racismo em sala de aula. Uma vez em que um livro escolar fazia referência ao texto do Gênesis da Criação do Mundo e queria mostrar aos alunos o poder criador da palavra, eu, para ajudá-los a chegarem onde o autor queria que chegassem, contei a eles a história da Criação do Mundo segundo o candomblé, no qual não se usa a palavra para criar. Os evangélicos taparam os ouvidos. A política de extermínio de pobres e favelados é aplaudida por pobres que não moram em favela. Uma aluna que se diz evangélica esqueceu as lições de amor e dignidade do Evangelho quando eu estava comentando a situação carcerária do país. Comentei a entrevista de uma padre da Pastoral Carcerária que visitou um desses campos de concentração transformados em museu e disse que havia mais conforto lá que nos presídios brasileiros. Ela me perguntou: "E você acha que bandido tem que ter conforto?" Quer dizer, ela acha certo colocar 100 homens onde só deveria caber 30 ou 40!
E os casos de bullying? (Por que não usam o termo nativo "zombaria" ao invés de importar um termo inglês?) Imagine que reforço para as zombarias contra os que são diferentes (negros, favelados etc.) se colocarmos nas mãos de alunos que não têm hábito de leitura nem consciência crítica termos preconceituosos.
Vivemos uma época em que os oprimidos disputam o Estado e seus Aparelhos Ideológicos e tentam eliminar preconceitos seculares. E toda a nossa civilização foi construída sobre preconceitos. Vale lembrar que a Bíblia diz que a mulher tem de ser submissa ao marido (então, seria um ser inferior; razão pela qual eu recuso a me casar, pois advogo a igualdade entre os sexos); que quem faz sexo com pessoas do mesmo sexo tem de ser exterminado; vale lembrar que Gregório de Matos despreza os negros; etc. etc. Não podemos fingir que tivemos um passado de glórias, como diz uma mentira chamada Hino Nacional Brasileiro. E como dizer que o futuro será de paz se o futuro começa agora?
Monteiro Lobato escreveu dessa forma porque, naquela época, não haiva por parte dos governos a ideia de por todas as crianças na escolas, nem um movimento negro tão atuante como hoje. Seus livros alcançavam a classe alta e a classe média. Mas quando suas estórias viraram seriados de TV, os produtores viram que tinham que pegar leve, não podiam ser fiéis aos livros, ou perderiam seus empregos. Da mesma forma, Margaret Mitchell escreveu um clássico chamado "... E o Vento Levou", lançado nos anos 30. Quando, nos anos 90, Alexandra Ripley se dispôs a escrever a continuação, "Scarlett", teve de dar um tratamento todo diferente para os negros do romance.
Marisa Lajolo pode ser uma intelectual competentíssima, mas ela não vive a realidade que eu vivo, trabalhando em escola pública, vendo o fascismo avançar a cada dia, travestido de revelação divina. E quanta gente conquistou cadeiras no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas no último pleito falando contra os direitos humanos? Regurgitando ódio aos presidiários, aos homossexuais, aos ateus, às mulheres pobres que precisam abortar (nenhuma mulher sonha com isso, lembremos sempre)?
Esta não é, cara Iza, uma discussão apenas literária, mas também sociológica.
Atenciosamente,
Edson Amaro

Marisa Lajolo e o veto a Monteiro Lobato

Minha querida professora Iza me enviou por email um texto da doutora Marisa Lajolo falando da polêmica causada por uma denúncia contra um livro de Monteiro Lobato. Eis o texto, com algumas aspas que acrescentei porque este blog não reconhece o que é grifado em itálico:

"Quem paga a música escolhe a dança?

Marisa Lajolo [1]

“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso .
Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.
Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida: felinos ferozes invadem o sítio e –de novo- é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças ( particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça.
Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.
Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares. O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.
Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu ( D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar .. !
É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação- manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem .
Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.
Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos . Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade contra a nova mulher do papai, mas – ao contrário- pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva...
Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação—pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta . E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores . .
No caso deste veto a “Caçadas de Pedrinho”, a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância “de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas; (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado” e exige “da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura.”
Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.
O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa ? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma auto-crítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?
As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro . Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir- será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder ... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê! "



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[1] Prof. Titular (aposentada) da UNICAMP; Prof. da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pequisadora Senior do CNPq.; Ex Secretária de Educação de Atibaia (SP); Organizadora ( com João Luís Ceccantini) do livro de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil) , obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2009 como melhor livro de Não Ficção.